quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Células-tronco ensinando a tratar doença de Rett.

Células-tronco ensinando a tratar doença de Rett.Por Mayana Zatz
Recentemente relatei uma pesquisa desenvolvida pela doutora Maria Rita Passos-Bueno, do Centro do Genoma Humano, mostrando como células-tronco obtidas da polpa dentária de crianças com lábio leporino e palato fendido ajudavam a desvendar os mecanismos responsáveis pelo aparecimento dessa malformação congênita. Agora uma nova pesquisa realizada pela doutora Maria Carolina Marchetto e doutor Alysson Muotri, dois cientistas brasileiros, permite um salto importante. A partir de células de pele (fibroblastos) obtidos de meninas com síndrome de Rett – uma doença genética neurológica progressiva – esses cientistas conseguiram gerar neurônios, descobrir o que havia de errado neles e propor estratégias para corrigir o defeito genético. O trabalho que foi publicado na revista CELL é um exemplo de como, além da terapia celular, as células-tronco podem contribuir para descobrir mecanismos que causam doenças e indicar novos caminhos para tratá-las. Para falar mais sobre conversei com o doutor Alysson Muotri que foi o coordenador dessa pesquisa e que atualmente está na Universidade da California.

Doutor Alysson, você poderia explicar o que é a síndrome de Rett e por que ela só afeta quase que exclusivamente meninas?


A síndrome de Rett é uma doença causada por alterações no gene chamado MeCP2, cuja função ainda não é bem estabelecida. Esse gene se localiza no cromossomo X, e é importante para estágios iniciais do desenvolvimento humano. Dessa forma, meninos (XY) que possuem apenas uma cópia do gene, têm menos chances de sobreviver caso aconteçam alterações no MeCP2. Meninas (XX) por outro lado, possuem duas cópias do gene, sobrevivendo melhor durante o desenvolvimento, pois a outra compensa até certo ponto. Existem alguns raros meninos com Rett que conseguem sobreviver, mas neles o quadro clínico é bem mais dramático do que nas meninas.

Já ouvi mais de uma pessoa dizendo que vocês haviam descoberto a cura para o autismo. Qual é a diferença entre a síndrome de Rett e autismo?


A síndrome de Rett faz parte do que chamamos de doenças do espectro autista. Essas doenças têm em comum os comportamentos repetitivos e dificuldade na socialização. Como o próprio nome diz, o “espectro” ou leque de doenças, sugere que existam casos mais amenos e outros mais severos. A síndrome de Rett está no extremo mais severo do espectro autista, pois além dos problemas comportamentais, as crianças também apresentam dificuldades motoras progressivas. Além disso, o gene responsável por essa síndrome já é bem conhecido.

Para estudar o que causa a síndrome de Rett vocês precisaram diferenciar células retiradas da pele em neurônios. Como vocês fizeram isso?

Meu grande sonho é poder estudar o desenvolvimento neural de pacientes com doenças psiquiátricas no laboratório. Até então tínhamos duas opções: modelos animais ou tecidos cerebrais doados após o falecimento do paciente. No primeiro caso, os modelos animais são limitados. Apesar de serem ótimos para pesquisar alterações motoras da doença, o comportamento social e cognitivo é difícil de ser estudado. Na segunda alternativa, os tecidos postmortem chegam aos laboratórios em condições precárias. Além disso, os efeitos e danos causados pela doença já aconteceram. Fica difícil então determinar quais foram os eventos iniciais que originaram o processo patológico.
Cerca de quatro anos atrás, o grupo japonês liderado pelo pesquisador Shinya Yamanaka surpreendeu o mundo ao demonstrar que células já especializadas de um indivíduo adulto, como células da pele, poderiam ser induzidas para um estágio primordial, comportando-se como células-tronco embrionárias. Essas células primordiais teriam a capacidade de formar outras células do indivíduo, como células do cérebro, por exemplo. Apesar do óbvio potencial de uso dessa tecnologia na medicina regenerativa, meu grupo e outros imediatamente visualizaram o uso para a modelagem de doenças neurológicas.
A reprogramação de células da pele foi feita pela expressão forçada de genes envolvidos na manutenção de células-tronco embrionárias humanas. Dessa forma, células da pele ‘pegam no tranco’ e passam a se comportar como células pluripotentes, tendo a capacidade de se especializar em outras células de outros tecidos.


O que vocês encontraram de diferente nos neurônios desses pacientes em comparação aos neurônios normais?


A característica mais fácil de se reconhecer foi o tamanho reduzido do núcleo das células neuronais dos pacientes em relação aos controles. Elas são 10% menores. Pode não parecer muito, mas células são tridimensionais, então a diferença levada ao cubo acaba sendo bem significativa. Essa simples observação já fornece uma explicação interessante do porque os pacientes com Rett apresentam uma redução do tamanho do cérebro, independente de degeneração neuronal.
Também observamos que os neurônios dos pacientes possuem uma menor arborização e uma redução no número de sinapses. As sinapses são estruturas pelas quais os neurônios se comunicam entre si. Isso sugere que as redes nervosas estariam defeituosas também. Confirmamos isso por métodos independentes.
O passo final foi investigar se as alterações eram permanentes ou não. Testamos algumas drogas na esperança de reverter essas características. Em duas ocasiões, encontramos compostos que foram capazes de deixar os neurônios doentes semelhantes ao grupo controle. Isso é fenomenal, pois indica uma potencial janela de aplicações terapêuticas.


Qual é a dificuldade em repetir essa estratégia em doenças que só se manifestam em idades mais avançadas, por exemplo a doença de Alzheimer ou a esclerose lateral amiotrófica (ELA), uma doença que tem sido objeto de muitas pesquisas aqui no Centro do Genoma Humano?

As deficiências nos neurônios de pacientes cujas doenças só se manifestem em estágios avançados podem ser causadas por fatores cumulativos. Isso indica que pode levar anos até que os neurônios apresentem alguma alteração. Como não conseguimos manter os neurônios no laboratório por muito tempo, isso acaba sendo um fator limitante na pesquisa. Uma alternativa seria tentar o uso de agentes que acelerassem o processo de envelhecimento neuronal, o que poderia eventualmente revelar possíveis características da doença nessas células.



http://veja.abril.com.br/blog/genetica/sem-categoria/celulas-tronco-ensinando-a-tratar-doenca-de-rett/